Mais Argila Nesse Vaso
Cerâmica é um troço fascinante. Taca argila naquela rodinha, modela e tadá. Um vaso passa a existir,
É meio parecido com escrever roteiro. Taca umas letrinhas na página vazia e tadá. Uma história ganha vida.
Outra semelhança é que mesmo precisando de muito pouco pra dar certo, é muito fácil dar errado. Geralmente porque a solução do ceramista iniciante diante do caos é ir tacando mais argila. Logo logo, fica dificil de modelar, e a forma buscada na cabeça passou longe da realidade.
Acontece com a gente escrevendo também. Todo dia. O papel aceita tudo, então bora tacar mais argila. Surge mais um personagem, dois, por que não? Mais argila e se cria um flashback sem função dramática, mais argila e peraí, uma história D que é redundante com todas e ficou faltando o payoff de uma pá de coisa e… mais argila, mais argila, mais argila e…
Caca. Meleca. Sujeira. Cocô. Defeco.
O que era pra ser uma obra, vira uma obrada.
Quem lê aqui sabe que quando eu escuto um mantra sobe aquela vontade de dar voadora, então vou poupar geral com um “menos é mais”. Até porque as vezes “mais é mais”. Taí o Almodóvar, Fellini, e o PT Anderson pra provar. O que atrapalha um roteiro não é a quantidade de argila, mas entender quanto de argila a gente precisa pra cada vaso, e isso é complexo pra chuchu.
Colocar mais argila pra ajudar, não pra atrapalhar.
Escrever com função dramática.
O nome é autoexplicativo. Função dramática é colocar um elemento que ajude o drama.
Drama, em grego, é ação.
A função dramática pode ser vista então como um elemento que vai impactar no andamento, entendimento, sensação ou profundidade da ação. Parece simples, talvez seja.
Mas Não É Sempre Assim?
É claro que tem um momento em que nós, escritores, precisamos deixar de lado a forma. Esquecer um pouco o vaso e brincar com a argila, sentir a meleca, a textura, jogar pra lá e pra cá. Só não recomendo fazer isso com a rodinha girando.
O Zé uma vez citou o Walter White. A gente não conhece muita coisa sobre ele que vários manuais de roteiro sugerem que se crie como, por exemplo, quem são os pais de Walter White? Como ele foi criado? Como foi a infância dele? Não só eles não aparecem nas várias temporadas da série, como não há nenhuma menção a eles ao longo da trama. Nenhuminha. Por que? Porque não importa.
Vários manuais recomendam que a criação de personagem seja um apanhado biográfico. O histórico, as crenças, os eventos que o marcaram, as preferências, as relações profissionais, familiares, de amizade, etc etc etc etc
Mas vem cá, não importa quem é a mãe do Walter White. Se James Bond nasceu em Mogi Mirim, se o Pernalonga é crente ou o Darth Vader gosta de amarelo. Não importa pra história.
É claro que os personagens tem um histórico são frutos de um contexto, mas chafurdar no passado do personagem pode ser sedutor, contraproducente fazer a gente perder o fio da meada.
Vamuvê o titio Antonio Candido no seu ensaio sobre a personagem de ficção diz:
“Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino. O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.”
Há várias coisas interessantes nesse pequeno texto. A primeira é que se assume que uma trama é uma organização e seleção de fatos. Tim Maia viveu 55 anos, seu filme durou apenas 2 horas. Como pode?
Houve uma seleção e uma organização, visando uma intencionalidade dos fatos para contar a história dele.
Se há um recorte tão delimitante sobre a história dessa personagem, parece evidente que exista um corte também sobre suas características, sobre quem ele é. Não se tenta num filme ou numa série exprimir a totalidade da complexidade do que é a experiência humana ou toda a gama de comportamentos que habita um indivíduo. O recorte age também sobre a personalidade.
Logo, não há necessidade, tempo e espaço para se pensar numa biografia inteira.
Um Ponto de Vista
Uma vez que a gente se livre da biografia do personagem, a gente pode começar com essa pequena fala do John Truby:
“No drama, o personagem é o representante de uma ideia, um valor ou uma visão de mundo.”
Se há, inevitavelmente, um recorte intencional sobre o personagem, podemos assumir que de alguma forma esse recorte representa algo. Então minha sugestão é pensar no que o recorte está representando. O que a trajetória do meu personagem está dizendo?
Complementando e discordando um pouco do Truby, nem sempre os personagens estão representando uma visão de mundo definida ou uma ideia fixa. Muitos deles têm pouca nitidez ou convicção sobre o que acreditam, ou ainda estão muito distantes do seu próprio consciente, mas, mesmo assim, nesses casos eles podem acabar sendo representantes humanos de uma questão ou uma problemática ainda sem resposta, que vai ser, justamente, desenvolvida na trama. Tais podem ser:
“Qual é a fronteira entre a vida pessoal e profissional?”, “A TV é uma arte ou um negócio?”, “Vale mais a pena viver uma vida breve e potente ou uma vida longa, segura e enfadonha?”, “Até onde se pode perder a humanidade para preservá-la?”entre tantas outras.
Um bom caminho então pode ser o de pensar que questão o personagem representa e como ela vai ser desenvolvida através da trama. Afinal, como já disse o Antonio Candido, a única forma de vermos o personagem é vê-lo em ação conforme a trama se desenrola.
E a partir disso, eu pessoalmente gosto de pensar que forças estão agindo sobre o personagem. O que o leva a um lado da questão? E ao outro? Que tipo de desejo ele tem? O que o freia? O que o motiva? Por que? Como isso se manifesta? Que dúvidas ele tem?
Começo essa composição pensando internamente e de forma “natural” começam a surgir movimentos na história que sinto que preciso mostrar na trama pra conseguir que esse personagem seja reconhecível, crível, complexo, mas dentro do contexto do enredo, e não de uma extensa biografia em que eu começo a atirar a história pra fora, de novo.
Um Sistema Solar
Um dos desafios quando a gente está arquitetando uma série é pensar em quais serão os personagens fixos e recorrentes. Não colocar argila demais e perder o centro, mas também não colocar de menos e esgotar as possibilidades narrativas na primeira temporada.
Uma coisa pra se ter em mente desde o início é que quanto mais personagens fixos de saída, menos a gente consegue se aprofundar neles. Por outro lado, mais variedade de interações se tornam possíveis.
Vamos comparar duas séries que têm semelhanças na sua premissa: Friends e Girls. Em ambas, jovens adultos (odeio esse termo, má vá lá) enfrentam os desafios da “entrada” na vida adulta numa grande metrópole norte-americana. OK.
Mesmo com essa base parecida, as séries não poderiam soar mais distintas. Esse efeito se dá por inúmeros motivos, desde o tom, até a época e o canal que passam. Essa marcação das diferenças também é inconfundível quando vemos como o “sistema solar” dos personagens foi pensado diferente.
Friends tem seis personagens fixos pra 22 minutos de tela. Girls tem quatro personagens fixo pra 30 minutos de tela. Não tem regra do que é melhor ou pior, embora Friends seja muito pior, mas o que está em jogo é continuar identificando a diferença de proposta. Friends é uma série mais rápida, num contrato principal de tramas autocontidas, sem a intencionalidade de aprofundar os personagens e suas contradições, logo, eles acabam se tornam mais rasos, caricatos, com características mais fixas. Com personagens menos profundos, a série precisava de mais personagens para permitir a variação da interação entre eles.
Já Girls se propõe a aprofundar e emprestar tridimensionalidade aos personagens. Seria muito difícil fazer isso com seis deles, mesmo com muito mais tempo de tela. Logo, a série tinha menos personagens fixos e mais profundos.
No Friends não há uma centralidade definida. Não temum protagonismo claro, e cada personagem representa uma visão, ou uma esfera dentro da problemática do amadurecimento. Rachel é a mimada, sem contato com a realidade e sem saber o que quer, Mônica é uma pessoa que depende muito da aprovação alheia, Ross é financeiramente estável, mas emocionalmente uma criança, Joey é um sonhador com dificuldade em fazer planos de longo prazo. E por aí vai. Cada um deles simboliza uma característica subordinada a esse grande guarda-chuva temático. Um influenciando o outro, criando forças de apoio e oposição entre si.
Em Girls a gente vê outra abordagem em relação aos personagens. Aqui, há, sim, um protagonismo, uma centralidade narrativa na figura da Hanna.
Hanna é uma personagem dividida, ela tem forças contraditórias agindo sobre ela. Se por um lado ela se considera uma artista, quer investir mais em sua carreira de escritora e arriscar mais, por outro lado, ela tem a necessidade material de se sustentar (uma vez que os pais cortaram seu dinheiro) e se assentar financeiramente. Não só isso, mas ela também quer isso, apesar de estar num eterno autoconvencimento de que ela precisa “viver como artista”. A personagem fica dividida entre as forças antagônicas dentro dela.
Não é à toa que as duas personagens que mais a influenciam, suas amigas Jessa e Marnie, são polos opostos dessa contradição. Enquanto Marnie diz a ela que Hanna precisa “tomar um rumo na vida e criar responsabilidade”, Jessa a convida a ser cada vez mais porra louca, afinal, ela é, nas palavras da amiga, “a voz de sua geração”.
Ao longo da trama, Hanna faz um movimento pendular entre as duas forças que a habitam, puxada pelas amigas, trafegando hora numa emoção, hora em outra.
Uma quarta e inesquecível personagem atua na forma de uma comentadora, uma clown, que é Shoshanna. Assim como Greg em Succession, ela é uma exacerbação das características da protagonista e do universo. Atua através do excesso, da saturação deliberada, de um contrato fora da realidade com o intuito de divertir, claro, mas também de jogar luz à problemática central a partir de uma caricatura da protagonista. Não é à toa que o nome Shoshanna contém Hanna, hein?!
O legal de Girls é que ao longo do tempo as próprias personagens, nas suas tridimensionalidades, transitam entre os papéis, mudando as dinâmicas de forças pré-estabelecidas, mas sempre dentro da pauta do amadurecimento.
Várias séries se baseiam nessa mesma estrutura de representações ou forças antagônicas pra criar seus personagens. Temos diferentes identidades do american way of life no Mad Men e forças opositoras em Breaking Bad. As diferentes facetas das mudanças de uma família norte-americana em Modern Family e a oposição mal elaborada entre vida pessoal e trabalho em The Office. Cada série pede um pensamento, mas talvez alguns caminhos aqui tenham apontado numa direção menos argilosa que a biografia.
Obrigado pela leitura e até a próxima.
Somos Demi Moore delineando um vaso perfeito. Até que as nossas inseguranças chegam por trás, fantasiadas de Patrick Swayze, pra dar uma melecada no que a gente tá fazendo.
Ótimo texto!
Muito bom saber que nem sempre as biografias funcionam. Me sentia uma palerma escrevendo perfis de pessoas que nem iam estar na trama, obrigada por tirar esse peso das minhas costas, rs.
Se for possível, posso deixar uma sugestão para algum tema futuro por aqui?
Muitos manuais dizem que toda cena tem que ser pela perspectiva do personagem principal, concordo com isso, mas em nenhum filme que eu assisto tem o protagonista em todas as cenas.
Se você puder dar dicas de como colocar isso na prática, eu agradeceria.
Muito obrigada pelo texto e boa semana :)