Não Seria Estranho Se Fosse o Contrário?
Amigos, leitores, leitoras, começo agradecendo quem, no meio do turbilhão, para uns minutinhos pra ler. Fico feliz de começar um espaço de discussão e de receber visitas de muita gente que admiro.
Quanto menos isso aqui for um monólogo, melhor. Convido todes a sugerirem questões, assuntos, leituras, temas e a enviarem também seus textos ou textículos. O Substack tem um sistema de creditar autoria muito maneiro. Cheguem junto. :)
Nem só de ansiedade social e ressaca moral se faz uma virada de ano. Não recomendo, mas há os que fazem metas. Pra muitos amigos, colegas, conhecidos e alunos, a meta é entrar numa sala de roteiro.
E sim, esse vai ser mais um texto sobre isso (zzzzzz), mas tentando pular um pouco a parte que diz que “pra cada um é diferente” e ir direto no que não é. Resumindo grosseiramente, se você não é herdeiro do cinema (o dedo coça no arroba) vai passar por duas etapas necessárias antes de emitir uma nota fiscal como roteirista e ir lá no grupo da ABRA perguntar qual o CNAE correto. Elas são: escrever e ser lido.
A vá.
Nem sempre óbvio o é evidente. Então no meio da salada de informalidade do mercado, talvez às vezes valha a pena falar do óbvio. Talvez.
Escrever
Já tinha conhecido a curiosa espécie dos roteiristas que não costumam ler, mas ultimamente fiquei fascinado pela cepa dos que não gostam de escrever.
Um dia um cabra me chamou no Instagram dizendo que queria entrar numa sala de roteiro pois não gostava muito de escrever gostava do trabalho coletivo pra jogar nas costas dos outros. Noutro fui “convidado” por um “roteirista” que queria fazer uma “parceria”. Funcionaria assim: ele tem as ideias, eu escrevo, a gente divide.
A sabedoria Casimírica não falha. Todo dia um malandro e um otário saem na rua. Se eles se encontram, dá negócio.
A proposta do sujeito é sintomática. Além dele ter uma autoestima infinita me releva mais duas coisas: que ideias e roteiros se confundem facinho facinho, e que eu tenho mó cara de otário.
Meta pra 2024, ser menos otário.
Nos últimos anos tive a sorte de participar do processo de montagem de um punhadinho de salas. Convidei diversos roteiristas a enviarem seus materiais e fiquei bastante impressionado com o fato de que muitos, com a pretensão de entrar numa sala de roteiro, não tinham nenhum roteiro de ficção (episódio ou longa) de autoria deles pra mostrar. Nenhunzinho. Zero.
Nunca conheci alguém que tenha feito um curso de natação teórica, ou um piloto de avião formado no Flight Simulator, tampouco um cozinheiro que leu todas as receitas da Rita Lobo mas nunca botou um alhinho pra dourar. Por que no roteiro seria diferente?
Mesmo assim, às vezes é. Que cursos, networking, leituras, repertório, contatos, eventos, ideias, pesquisa tem seu valor, ninguém discute, mas nada substitui a escrita.
Uma sala de roteiro é composta por quatro ou cinco cadeiras, às vezes três, dificil imaginar que alguma vai ser ocupada por alguém que não tem nenhum roteiro pra mostrar.
Antes de sair cavucando uma vaguinha numa sala de roteiro, se jogue pra escrever um roteiro que tenha sua cara, por mais feia que seja. Despeje seu coração no Final Draft e busque imprimir seu estilo ao máximo. Mostre sua personalidade, grite com sua voz. Fuja do que “o mercado quer”, da ideia de tentar “se diversificar ao máximo”. Teu cartão de visitas é tua subjetividade, seu jeito de enxergar e elaborar o mundo.
Fez template fodola pro CV, legal, parabéns. Conheceu gente influente-bonita-descolada num evento, ótimo. Rolou uma rodada de negócios tântrica num evento, supimpa. Ganhou like de dono de produtora num texto existencial corporativo conceito metafísico no LinkedIn, foda. Postou no Insta que foi na estreia de um filme e tirou foto com (agora ex) global, porra, bacana. Tudo muito bom, mas não desperdice esse esforço se não tiver um roteiro legal pra mostrar quando surgir uma oportunidade. Digo isso porque vejo muita gente focada em “fazer networking” antes de ter escrito um roteiro que goste e isso gera um vórtice de frustração.
Gera porque fazer networking também dá trabalho. Daí você consegue, finalmente, conhecer alguém legal disposto a ler teu roteiro, ou ao menos a fingir que vai ler, daí o roteiro não tava bom ainda, mas você fica no dilema entre perder o timing ou terminar o roteiro, daí você manda pra não perder o timing; daí leva um ghosting do sujeito e não sabe se é porque ele não leu ou não gostou; daí você manda 500 e-maisl pro sujeito e nada, daí vai rolando mais frustração, daí ainda não rolou aquela vaga que você tanto queria e você não aguenta mais teu tio que é contador ou corretor de imóveis sempre te perguntando se dá pra viver de escrever e que ele mesmo poderia fazer isso; daí cê sai ainda mais desesperado no afã de conseguir uma vaga e faz ainda mais networking e manda o mesmo texto que ficou meio mal ajambrado e que você ainda não terminou porque tava fazendo networking, e a coisa não para até o dia que você vira estagiário no escritório de contabilidade do teu tio ou corretor na mesma firma que ele.
Tudo porque a energia ficou onde não deveria. Passou longe da escrita.
Vi uma entrevista recente do Seinfeld com o David Letterman. Nela, Seinfeld, contava a experiência de começar sua sitcom. Quando ele recebeu os primeiros textos dos roteiristas que até então eram experientes, se impressionou com a distância de onde ele queria chegar em termos de qualidade. É aí que o Letterman disparou: “não seria estranho se fosse o contrário?”
Escrever bem não é fácil. Pra quem tá começando e pra quem já começou. A vantagem, por outro lado, é que melhora com a prática. O processo de se tornar escritor ou escritora é um contínuo, algo que nunca vai estar pronto. Se um roteirista disser que está 100% maduro, provavelmente ele é 100% ruim ou 100% charlatão. Provavelmente os dois.
Sendo assim, quantidade também é qualidade. Desmistificar o processo é importante pra baixar nossas travas, achar nossa voz. Sentir medo, vergonha e tesão enquanto fabula o mundo. Focar em escrever sem medo, por prazer, aberto pro que vem e focar em escrever roteiro não só pra termos o que mostrar, mas pra praticarmos e amadurecermos nossa escrita.
Pra iluminar fiz uma breve lista do que não é e do que é escrever o roteiro.
Não é escrever um roteiro:
Ter 10 loglines.
Ter 10 milhões de loglines.
Dar ideias.
Fazer consultoria.
Ter aulas.
Ter aulas com gringo fodola.
Dar aulas.
Ser amigo de outros roteiristas.
Sair pra beber com outros roteiristas.
Estar num grupo de whatsapp com outros roteiristas.
Ter feito uma bíblia pirotécnica.
Desenvolver um argumento (embora quase).
Ter feito alguma outra função no audiovisual.
E o que é considerado escrever um roteiro:
Escrever um roteiro.
Ser Lido
Agora, se você tá no ponto que gostou do que escreveu, mostrou pros parça sincerão e falaram que tá fera, pitcheou a ideia pro seu tio e até ele achou maneiro, chegou a hora. Afinal, de que adianta escrever o Ulisses do século XXI e deixar mofando no desktop?
Também não adianta mandar um e-mail pro Fernando Meirelles com teu roteiro e esperar que ele responda sem nem te conhecer.
Bora descer pro play do tal networking, mas com foco: que leiam teu roteiro. E pra que isso aconteça é muito mais provável que a pessoa precise, de alguma forma, te conhecer primeiro. Na hora de abordar uma pessoa num evento que você tem vontade de se relacionar, aqui vão algumas dicas:
Respeite a hora e o lugar. Tem maluco que começa a fazer pitch na festinha do FRAPA, no hora de fazer o prato no restaurante por quilo e até no mictório. Embora as pessoas vão a um evento pra se relacionar, nem todo mundo está nessa pira o tempo todo. Não vá na sanha maluca de tentar contar um projeto seu num contexto bizarro. É raro, mas acontece muito.
Se posicionar pra se tornar conhecido não é se auto-promover em tempo recorde. Cuidado pra não se enaltecer demais…
Nem em se tornar um puxa-saco.
Não atravesse outros assuntos. Às vezes a pessoa tá ali de boa falando com um amigo que não vê há uma vida e é interrompida. Se consegue o papo, mas cria-se um bode, tiro no pé.
Fuja dos vampiros de energia, e não seja um deles. Apesar deles estarem em seu habitat natural, há diversas formas de dar um perdido neles.
E caso a conversa flua, sinta se há abertura pra você enviar algum texto futuramente.
A partir disso surge outra questão. É comum que exista uma vergonha em ser lido. Acho que ela pode atuar principalmente de duas formas: a primeira é uma tensão, inevitável, de ter seu trabalho avaliado. Se for um dos seus primeiros trabalhos aproveite pra escutar, trocar, pegar devolutivas. Amadureça o trabalho e acredite no processo. Se dedicar a um roteiro não quer dizer que você precisa ser genial de primeira.
Seria estranho se fosse o contrário.
Uma outra vergonha, talvez mais interessante, é de se sentir exposto pra além da avaliação da “qualidade”, a de ter a sensação ambígua de ter alguém lendo seus sentimentos. Esse é um bom sinal, pois sentimos vergonha de coisas que são verdade, e escrever com sinceridade é o passo mais importante pra escrever algo “bom”. Inclusive, pode ser muito interessante abraçar as ideias e caminhos que te deixem com mais com mais vergonha, pois pode ter ali um potencial de se relacionar de forma interessante. A vulnerável pode ser um indicativo de que o projeto é verdadeiro.
É muito melhor ler um roteiro tecnicamente bambo e com alma, do que ler um “redondinho” sem coração
Afinal, a escrita não é um processo de um encaixe numa estrutura, de uma ideia que se torna mecanizada. De requentar o que já existe. De sorver as referências e esquecer de si mesmo. Não é produto, é obra. Se coloque ao máximo, mesmo se disfarçando através dos personagens.
A pedidos da Margot, termino com um aforismo, não do grande Doc, mas do Winnicott:
Esconder-se é um prazer, mas, não ser encontrado é uma catástrofe.
Sugiro também seguir o instagram da Andrea Yagui que escreveu muito sobre o assunto de forma didática e embasada, com um conteúdo muito maneiro.
Obrigado pela leitura e até as próximas :)
Aaaaa eu lendo e concordando com tudo e dando risadinhas e de repente EU MESMA apareço no final! Obrigada, fico mega lisongeada! Tô amando a newsletter ❤️
Seu texto me trouxe muito conforto e muita inquietação ao mesmo tempo, Paulo. Obrigado!
Quando você falou do medo que temos em mostrar nossos projetos, senti até uma pontada. Realmente, quando colocamos o coração nas páginas o medo da crítica é gigante. Afinal, se eu tô colocando minha alma no projeto, é inevitável pensar que o que estão criticando na verdade é minha alma. Até escrever esse comentário tá me dando um nervosismo da porra, só de saber q tem outros roteiristas comentando aqui.
Ah, e não acho que você tenha que parar de ser otário! Você não é otário! Talvez só tenha que parar de se parecer com um.
Brincadeiras à parte, por favor continue escrevendo pra gente. Valeu!