Se você já leu algum manual de roteiro provavelmente vai se lembrar da base em que eles explicam a dramaturgia: o desejo. O personagem tem uma vontade, que ele tenta realizá-la a partir de ações e a partir daí encontrará conflitos que precisará superar para ao final, realizar ou fracassar em seu desejo.
São narrativas que se baseiam na lógica da causa e efeito. O personagem quer algo, procura isso, algo acontece nessa busca, ele reage a isso, e faz outra ação que tem outra consequência e outra reação que seguem assim numa espiral até o ponto-chave da história, o clímax.
A Pixar, inclusive, tem o seu desenho que eles chama de espinha da história, assim:
Era uma vez _______. Todo dia ele _______. Mas, um dia ele_____ por causa disso ele ______, por causa disso ele _____, por causa disso ele _____ ,até que finalmente ele ______. Desde então ele __________.
Essa forma de estruturar a história tem sua gênese no Aristóteles, o primeiro a apontar pro conceito de Unidade de Ação, uma ação identificável, objetiva, que seria a mola propulsora do enredo. Ações que sustentam o filme todo, tais como:
Matar o tubarão
Destruir o anel
Encontrar o Nemo
Chegar e ganhar no concurso de Little Miss Sunshine
Sair da ilha
Voltar pra Terra
Desarmar uma bomba
Casar
Desfazer um mal entendido
Enriquecer
Entre várias outras que variam conforme o gênero/trama. Vários e vários filmes e séries se estruturam na lógica da ação. A gente costuma chamar de “drama clássico” ou, pra soar mais chique, arquitrama. O Zé Carvalho na Roteiraria chama de “1o Campo”. O importante de pensar é que essa não é a forma de narrar, mas uma forma de narrar.
A Inserção Cultural
Seria ingênuo ou estúpido defender que as narrativas se mantem iguais da época de Aristóteles pra cá. Há muitas possibilidades, mas Hollywood abraçou e tornou hegemônica a narrativa aristotélica da arquitrama porque pra além do efeito estético de tornar o conflito reconhecível e talvez mais palatável, também foi uma escolha cultural.
Os Estados Unidos que foi colonizada por ingleses pós-iluminismo, cujo contexto era o de uma supervalorização da racionalidade e que, sobretudo, queria acreditar o mundo de uma forma “lógica”. Logo, a causa e consequência permeou e permeia o estilo de vida deles desde então, encontrando seu ápice na lógica neoliberal que a vida se “autoregula” e que o homem é o “grande escritor de sua própria história”. No livro A Nova Razão do Mundo vem uma bela trauletada:
Como sabemos, a generalização da forma-empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se autocompreenderem como “empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno, e que compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de “inteligência emocional” e otimização de suas competências afetivas. Ela permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo”
Não é à toa que os Estados Unidos são berço do maior mito contemporâneo, o do self made man. Aposto que você já ouviu a história do sujeito que começou limpando o chão da empresa pra se tornar presidente da mesma, com base no próprio esforço. São histórias narradas e organizadas numa lógica que, ao se escolher o modelo de causa e consequência se incute, de forma inadvertida, os valores que permeiam a obra e que moldam a subjetividade de uma cultura. O sujeito foi um trabalhador incansável e, por mérito próprio, ascendeu economicamente. Esses são valores que a relação de causa e consequência reafirma ao estruturar sua história a partir desse paradigma e que inescapavelmente permeiam a psiquê de quem faz parte da cultura.
Inegavelmente são histórias que tem um apelo imediato. Nós entendemos pra onde o personagem quer ir e o que ele faz pra chegar lá. Há pouco espaço pra brechas e dúvidas. Nós conseguimos fazer uma projeção identificacional direta e, com isso, nos engajarmos na história.
E apesar desse tipo de história ser muito reconfortante no sentido de organizar aspectos da experiência humana, selecionando e ordenando. esse estilo de narrativa não contempla aspectos muito importantes de nossas vivências, como as ambiguidades, contradições, traumas, angústias e a interferência do acaso.
Um dos meus romances preferidos, Pastoral Americana (não assistam o filme!), trata, justamente, de um personagem que se organizou pra fazer a vida toda by the book, mas a tragédia o persegue de uma forma que ele não consegue administrar. O livro todo ele se pergunta o que fez de errado, levantando hipóteses, procurando uma causa pra uma consequência inesperada, em vão.
Saindo da Lógica
E assim como o livro, eu tinha uma sensação estranha ao me deparar com vários filmes e séries que não estão estruturados dentro dessa lógica. Como pode o manual de roteiro dizer uma coisa e eu gostar de tanta coisa que foge disso? Alguns recentes são filmes como Lady Bird, Moonlight, Frances Ha, Aftersun e séries como Fleabag, Bojack Horseman, Atlanta, Bebê Rena e Mad Men, exemplos imediatos que escapam bastante da lógica de um personagem com um único desejo que vai transformá-lo numa ação e se jogar numa história de causa e consequência.
Ao abrir mão de uma lógica de causalidade da narrativa, a gente pode se sentir, também, angustiado. Pra onde ir? Se antes o desejo, objetivo e sua materialização através da ação serviam de guia pra traçarmos a história, no que nos apoiamos agora?
Uma boa possibilidade diante dessa quebra ainda é usar o conflito como fator determinante, mas reposicioná-lo. Ao invés desse conflito vir da dificuldade ante a ação que materializa o desejo, é um conflito interno. Um conflito que busca extrair e aprofundar o máximo da subjetividade e contradição do personagem a partir de sua psiquê, tendo menos estímulo de fora. Se a “trama clássica” da Pixar precisa andar pra frente, uma possibilidade da trama mais moderna é andar pra dentro.
Por nossa natureza múltipla e fundamentalmente ambivalente, esse tipo de história costuma ter personagens mais complexos, com contradições, que possuem mais de um desejo ou que ainda não o descobriu. De uma forma ou de outra, um ponto-chave interessante para começar uma trama estruturada assim é pensar na angústia do personagem.
Freud Explica
Uma ferramenta que foge bastante à regra da arquitrama é colocar o personagem em desconhecimento do seu próprio desejo. Ao desejarmos algo, nós, pessoas, tomamos duas posições complementares: a primeira é o reconhecimento de que nos falta algo (por isso o desejamos), e a segunda é a de nos tornarmos sujeitos que vão em busca desse algo. A partir do momento em que desejamos, somos.
Um personagem que tem seu desejo difuso, como o das séries e filmes citados acima, automaticamente quebra a lógica clássica da dramaturgia pois ele está num processo de desconhecimento do próprio desejo e, por consequência, de si mesmo. Está desconectado do seu “verdadeiro eu”, ou do self.
Muitas vezes a desconexão acontece como efeito da dificuldade em lidar com a falta. Estão angustiados por terem que vivenciar um vazio afetivo, moral ou de sentido que os joga na angústia e desconexão. Don Draper, Tony Soprano, Hannah (de Girls) são exemplos muito reconhecíveis. Bojack Horseman é isso do começo ao fim. Então uma boa construção para o personagem que começa nesse jogo é pensar em qual sua necessidade interna. E é interessante que muitas vezes nós, roteiristas, sabemos da necessidade do personagem muito antes deles. É comum, inclusive, que o arco desse tipo de personagem, uma vez que não é baseado na conquista do objetivo, é o de reconhecer a falta ou identificar a necessidade. Não é sobre conseguir as coisas, mas sim identificá-las. Lembrou de Fleabag? Pois é.
No texto “Inibição, Sintoma e Angústia”, do Freud, dois caminhos são apontados que podem ser muito interessantes pra nos ajudar a pensar as histórias que lidam com a falta.
O primeiro é o da repressão e escape. O “eu”, ou “ego”, ficaria sanduichado entre um desejo que o personagem não assume e o reprime e, depois, com isso, a necessidade urgente de satisfazer esse desejo. O personagem pode viver uma montanha russa entre o desejo que ele tem, as ações que o levam de súbito a dar vazão a eles e, depois, a tentativa de reprimi-lo seguido da culpa. Claro, tudo isso transformado em ações.
Quando fica cara a cara com a própria mortalidade, Walter White tem o desejo de adquirir poder e potência no seu suspiro final, um desejo que, por um mecanismo interno, ele torna “justificável” ao repetir pra si mesmo e pros outros que faz isso pela sua família. Ao longo de toda a série a gente via Walter oscilando entre o desejo (que estava reprimido e agora sai) e a culpa/justificativa pra ele. A gente entende ao longo da série que ele tem mais satisfação se tornando um temeroso chefão do crime do que capitalizando pra sua família.
Um mecanismo interno que anda lado a lado da justificativa e da repressão é o de se fabricar um “falso objetivo” em que o personagem acredita que nele encontrará a satisfação que tanto busca, que vai suprir sua necessidade primordial, mas que, ao fim, não o satisfaz. É o caso, por exemplo, de Lady Bird achar que tudo vai mudar quando sair da sua cidade natal, do Coringa achar que vai ser amado quando se tornar comediante, ou ainda dos personagens de Treta acreditarem que “vencendo a disputa”, eles seriam mais felizes. Esse tipo de jogo funciona muito bem pra manter as histórias em aberto, em ter um objetivo mais ou menos palpável, mas poder criar uma jornada não-linear, onde o personagem faz um pêndulo entre hora dar razão ao seu superego (repressão, culpa ou consciência) e hora ao seu id (desejo, instinto, pulsão). Enquanto roteiristas, nosso papel é puxar uma situação ou pequenas situações que provoquem o choque dessas forças, como o incidente do treta ou o câncer de Walter para, assim, abrir a brecha que nos permite escavar os personagens.
Uma outra forma de mecanismo psíquico identificado por Freud é a inibição. Ao lidar com a falta, nós podemos recorrer a apatia. Se você é um roteirista com bloqueio criativo sabe bem o que eu estou falando. Diante da angústia de lidar com uma página em branco ou uma página ruim, a gente pode procrastinar e se jogar em atividades passivas e intermináveis como maratonar séries ou zerar o feed do instagram. Isso é um mecanismo interno de fuga, inibição, uma vez que ter que lidar com algo que ainda achamos que está longe de estar pronto é, de certa forma, lidar com nossa própria falta. Esse é um exemplo tosco, mas que serve de forma ilustrativa para entendermos personagens que estão nessa lógica.
Apatia, como o nome já sugere, é a ausência de pathos, ou a ausência de paixões. Em um mundo cada vez mais excessivo, pós-moderno e deslizante, fica cada vez mais difícil se fixar em algo, e as inúmeras possibilidades podem stressar e reforçar a inibição de ir atrás de um desejo, deixando o personagem apático, passivo. Vejo traços disso muito presentes em séries como The Bear, Atlanta e Bojack Horseman, cada um à sua maneira. Nessas tramas, é comum a gente ver um acúmulo de experiências, mas, diferente da relação de causa e consequência, o personagem não consegue elaborar o que elas significam ou às vezes elas não estarem interconectadas. A história se dá muitas vezes em contraste com o excesso (de ritmo, de velocidade, de voltagem, de absurdo) do entorno e a apatia de quem está vivenciando-as. Um dos meus episódios favoritos de Atlanta, Barbershop, traz esse contraste na figura do Paper Boy, que é logicamente atravessado por questões sociais, étnicas e de várias outras ordens, mas que não consegue ou não precisa elaborar o seu mal estar diante de uma série de aventuras nomádicas absurdas em que seu barbeiro o coloca.
Sendo assim, a gente pode abrir o leque das possibilidades de se trabalhar o personagem, desejo e ação. Saindo da história clássica do Procurando Nemo, passando pela mistura de ação com profundidade como Breaking Bad e Treta, trabalhando a angústia da busca do próprio desejo como Bojack e Frances Ha, jogando luz na apatia de The Bear ou Atlanta ou até usando a angústia de um trauma como Bebê Rena e Fleabag pra trabalhar personagens mais complexos, multifacetados e interessantes, sem regra e hierarquia do que é melhor, mas transcendendo a simplicidade de uma visão absoluta sobre contar uma história.
Fico bastante tocado com cineastas que conseguem retratar a angústia, histórias que “avançam pra dentro”. Não sei se é impressão minha, mas parece que esse tipo de “antitrama” tá começando a cair no gosto do público, o que é muito bom, pq os estúdios começam a ver retorno e incentivar mais histórias assim.
Muito bom! Já fui teu aluno e sou teu fã! Bom te ver por aqui, meu caro!